Introdução
Ao longo do século XX, o modelo padrão da Física de Partículas se desenvolveu possibilitando uma descrição da matéria e suas interações. Há quatro interações fundamentais, a interação forte, a fraca, a eletromagnética e a gravitacional. A matéria se subdivide em três classes de partículas elementares: os quarks, os léptons e as partículas mediadoras. Os quarks são responsáveis por formar a matéria hadrônica, i.e., os hádrons. Um exemplo de hádron é o próton, formado por dois quarks up e um quark down.
Um fenômeno muito presente nas interações entre hádrons é o surgimento de chuveiros de pártons (partón é um termo genérico para quarks e glúons), que desempenham um papel muito importante no processo de hadronização, e na criação das partículas dos chuveiros atmosféricos dos raios cósmicos.
Tendo em vista a importância desse fenômeno em diversas interações que envolvam hádrons, o presente trabalho objetiva falar sobre chuveiros de pártons de forma conceitual, a fim de introduzir o leitor ao assunto. Além disso, serão também expostas duas aplicações desse fenômeno, uma na Física de Partículas e outra em chuveiros atmosféricos de Raios Cósmicos. A justificativa para este trabalho reside no fato de que tal fenômeno abriga uma profunda relevância em múltiplas áreas relacionadas a Física de Partículas, de modo que o conhecimento, mesmo que qualitativo, desse processo se faz de grande importância para pesquisadores de áreas correlatas.
Noções preliminares
A matéria é constituída de átomos, que por sua vez são feitos de léptons e quarks. Os léptons, do grego leptos que significa leve, presentes nos átomos são os elétrons, que estão na eletrosfera. Já os quarks, partículas fundamentais que formam os hádrons, estão presentes no interior do prótons e nêutrons.
Um hádron, do grego hadros que significa forte, é uma partícula composta por quarks, exemplos destes são prótons, nêutrons, píons, káons, etc. Existem seis quarks, segundo o Modelo Padrão da Física de Partículas, estes são: quark up (u), down (d), strange (s), charm (c), top (t) e bottom (b). Os quarks constituem estados ligados, que são chamados de hádrons, através da força forte, i.e. a força responsável por manter os hádrons coesos, e também responsável pela estabilidade do núcleo dos átomos.
As forças fundamentais da natureza podem ser descritas a partir da troca de partículas mediadoras, no caso da força forte, a partícula mediadora da força forte é um bóson (bóson é uma partícula com número quântico de spin inteiro) eletricamente neutro chamado glúon (g). Já a partícula mediadora da força eletromagnética é o fóton, outro bóson eletricamente neutro.
Assim, no interior de um hádron há dois a três quarks, interligados por intermédio da força forte, que se manifesta pela troca de glúons.
A força entre quarks é atrativa e cresce conforme a distância entre eles aumenta, mas quando estes estão próximos ela é fraca, fazendo os quarks comportam-se como se fossem livres – esse fenômeno é chamado de liberdade assintótica. Os quarks não podem ser encontrado livres, sempre estando confinados a estados ligados. O potencial de interação entre dois quarks confinados é dado por
$$ V(r) = -\frac{4 \alpha_s}{3r} + kr ,$$
onde $r$ é a distância entre dois quarks, k é uma constante com valor aproximado de 1 GeV/fm e $\alpha_s$ é a constante de acoplamento da força forte (EICHTEN et al, 1975; SOUZA, 2013)
**Chuveiros de Pártons**
Quando um hádron interage com outro objeto – seja um outro hádron ou um lépton –, e a energia das partículas interagentes for suficientemente alta pode ocorrer a criação de um chuveiro de pártons. Tomando-se a interação abaixo com exemplo
$$e^- + p \rightarrow e^- + X ,$$
onde um elétrons interage com um próton através de uma interação eletromagnética. O X na equação representa os possíveis hádrons que são criados a partir dessa interação.
Se a energia do elétron estiver acima do limite da ordem de 1 GeV, ao interagir com o próton, este trocara um fóton $\gamma$ com o hádron cujo comprimento de onda é da ordem de magnitude do diâmetro do mesmo. Assim, o $\gamma$ penetrará no interior do próton, não interagindo com este como um todo, mas sim com um dos quarks que o constitui. Ao interação $\gamma – q $ fará com o $q$ adquira uma grande energia cinética. Como resultado disso, o elétron será defletido por um ângulo grande, como se tivesse interagido com um “caroço” rígido, e o quark irá emitir novas partículas que constituirão um chuveiro de pártons.
O chuveiro de pártons se constitui em uma série de novas partículas, geradas a partir do quark. Tais partículas, chamadas de pártons, são quarks e glúons. O termo párton foi cunhado por Feynman (1988, p. 292) em 1969 para designar constituintes rígidos e pontuais dos hádrons. Atualmente, o termo párton é usado para se referir genericamente a constituintes dos hádrons, sejam estes quarks ou glúons.
A medida em que os pártons do chuveiro se afastam a força forte entre eles aumenta. Quando a distância entre os pártons fica da ordem do diâmetro de um hádron, que é $10^{-15}$ m, estes começam o processo de hadronização. O processo de hadronização é a aglutinação de quarks e glúons em estados ligados, o que resulta na criação de hádrons. Os chuveiros de pártons geram uma miríade de novas partículas, desse modo, após a hadronização do chuveiro muitos hádrons novos aparecem. Na expressão da interação do $e^-$ com o próton, o X representa os muitos hádrons que aparecem após a hadronização do chuveiro de partons.
Os processos de hadronização e criação de chuveiro de partons são sempre presentes em processos que envolvam hádrons, e estejam acima de um dado limite de energia. Além disso, esse fenômeno reflete a impossibilidade de isolar um quark, visto que o quark, com o qual houve a interação, não se “desgruda” do seu estado ligado, a energização dele promove a emissão de um chuveiro e a posterior hadronização.
A seguir, serão abordados alguns fenômenos em que esses processos se fazem presentes.
**Chuveiro de Pártons: Aplicações na Física de Partículas**
A Física de Partículas lança mão colisões entre partículas a fim de averiguar seus constituintes. Quando mais energia as partículas que colidem possuem, mais fundo é possível sondar os constituintes desses objetos.
Nas colisões em aceleradores de hádrons, tais como o *Large Hadron Collider* (LHC) ou *Relativistic Heavy Ion Collider* (RHIC), os chuveiros de pártons são muito presentes. Um exemplo de colisão muito frequente no LHC é a colisão entre prótons, conforme a interação expressa abaixo:
$$ p + p \rightarrow \pi^0 + X .$$
Nessa interação em particular, estudada por Büsser et al. (1973), devido à alta energia dos feixes, os prótons se aproximam de modo que os quarks dos mesmos interajam, via troca de glúons, espalhando um dos quarks de um dos prótons. Este quark posteriormente produz um chuveiro de pártons que se hadroniza, formando um píon neutro com momentum similar ao do quark inicial e outros hádrons quaisquer, denotados por X. O quark que emitiu o glúon também contribui com
X, visto que a partir deste desencadeiam-se também chuveiros de pártons.
**Chuveiro de Pártons: Aplicações em Raios Cósmicos**
Segundo De Angelis e Pimenta (2018, p. 21) raios cósmicos são partículas de origem extraterrestre, sendo boa parte destes prótons, e o restante átomos de hélio (10 %), nêutrons ou elementos mais pesados (1 %) e uma pequena fração sendo composta por elétrons e radiação gama.
Raios cósmicos têm energias que chegam até $10 ^{22}$ eV, podendo ser provenientes do sol (partículas de até $10 ^{9}$ eV) (BANDEIRA e MACKEDANZ, 2019, p. 5), da Via Láctea (partículas de até $10 ^{15}$ eV) ou de origem extragaláctica (partículas de até $10 ^{22}$ eV) (DE ANGELIS e PIMENTA, 2018, p. 20).
Para os raios mais energéticos, i.e. os de origem extragaláctica, Bandeira e Mackedanz (2019, p. 5-6) apontam galáxias com núcleos ativos, estrelas de nêutrons e explosões de raios gama como sendo as possíveis fontes.
Os raios cósmicos que atingem a Terra são chamados de raios primários, ao entrarem em contato com partículas da camada mais alta da atmosfera, estes geram novas partículas que chegam até a superfície da Terra através de chuveiros atmosféricos.
Os chuveiros atmosféricos são sequências de hádrons e léptons que se propagam ao longo da atmosfera a partir do raio cósmico inicial. Muitos destes são instáveis, principalmente os hádrons, de modo que na superfície da Terra normalmente chegam léptons. A ocorrência de chuveiros atmosféricos é muito importante, pois estes podem ser reconstruídos a fim de entender-se mais sobre os raios cósmicos.
O fenômeno de chuveiro de pártons, bem como o da hadronização, se encontram presentes na origem dos chuveiros atmosféricos dos raios cósmicos. Quando uma partícula elementar, ou hádron, de um raio cósmico primário, interage com um hádron no topo da atmosfera terrestre, devido a alta energia do raio cósmico este energiza os quarks do hádron atmosférico, fazendo com que este emita um chuveiro de pártons, qual se hadroniza gerando hádrons conhecidos como raios cósmicos secundários.
Os raios cósmicos secundários são frequentemente os três hádrons $\pi$, isto é, o $\pi^+$, $\pi^-$ e o $\pi^0$ (PERKINS, 2009, p. 239). Esse píons são instáveis e tendem a decair em léptons como múons $\mu^- $ e neutrinos $\nu^-$. Os múons são as partículas mais abundantes detectadas nos chuveiros, estes são instáveis e podem decair antes de percorrerem toda a altura da atmosfera dependendo da sua energia (PERKINS, 2009, p. 239).
Os aceleradores de partículas construídos com tecnologia atual conseguem chegar a energias da ordem de $10^{12}$ eV por feixe, ao passo que os raios cósmicos mais energéticos chegam a uma energia $10^{10}$ ordens de magnitude superior. Isso mostra a importância dos raios cósmicos para a Física de Partículas, visto que estes se constituem como poentes aceleradores naturais, possibilitando estudos das partículas e suas interações em escalas de energia nunca antes alcançadas pela humidade.
Conclusão
O presente trabalho teve por objetivo expor de forma qualitativa o fenômeno de chuveiro de pártons, bem como duas aplicações. Esse fenômeno, apesar de pouco conhecido, é muito importante e muito recorrente em interações envolvendo hádrons. É por meio deste que se faz possível entender o surgimento de jatos de hádrons em colisões nos aceleradores, bem como o surgimento dos chuveiros atmosféricos.
Tendo em vista o exposto no trabalho, pode-se dizer que o objetivo do mesmo foi satisfeito.
Referências:
BANDEIRA, Y. B.; MACKEDANZ, L. F. . Mecanismos de limitação da energia de raios cósmicos durante sua propagação. Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 41, 2019.
BÜSSER, F. et al. Observation of π0 mesons with large transverse momentum in
high-energy proton-proton collisions. Physics Letters B, Elsevier, v. 46, n. 3, p. 471–476,
1973.
DE ANGELIS, A.; PIMENTA, M.. Introduction to particle and astroparticle physics: multimessenger astronomy and its particle physics foundations. 2º ed. [S.l.]: Springer, 2018.
EICHTEN, E. et al. Spectrum of charmed quark-antiquark bound states. Physical review letters, v. 34, n. 6, p. 369, 1975.
FEYNMAN, R. P. The behavior of hadron collisions at extreme energies. In: Special
Relativity and Quantum Theory. [S.l.]: Springer, 1988. p. 289–304.
PERKINS, D. H. Particle astrophysics. 2º ed. [S.l.]: Oxford University Press, 2009.
SOUZA, U. G. Medida da produção de hádrons estranhos e estudo do processo de hadronização em colisões entre íons pesados relativísticos. 2013. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.